"Não digas nada, dá-me só a mão. Palavra de honra que não é preciso dizer nada, a mão chega.
Parece-te estranho que a mão chegue, não é, mas chega.
Se calhar sou uma pessoa carente.
Se calhar nem sequer sou carente, sou só parvo."


António Lobo Antunes




Para Ti  


Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo

Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre

Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida


Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"



 CASA ARRUMADA

de Carlos Drummond de Andrade
 
"Casa arrumada é assim:
Um lugar organizado, limpo, com espaço livre pra circulação e uma boa
entrada de luz.
Mas casa, para mim, tem que ser casa e não um centro cirúrgico, um
cenário de novela.
Tem gente que gasta muito tempo limpando, esterilizando, ajeitando os
móveis, afofando as almofadas...
Não, eu prefiro viver numa casa onde eu bato o olho e percebo logo:
Aqui tem vida...
Casa com vida, para
mim, é aquela em que os livros saem das prateleiras
e os enfeites brincam de trocar de lugar.
Casa com vida tem fogão gasto pelo uso, pelo abuso das refeições
fartas, que chamam todo mundo pra mesa da cozinha.
Sofá sem mancha?
Tapete sem fio puxado?
Mesa sem marca de copo?
Tá na cara que é casa sem festa.
E se o piso não tem arranhão, é porque ali ninguém dança.
Casa com vida, para mim, tem banheiro com vapor perfumado no meio da tarde.
Tem gaveta de entulho, daquelas que a gente guarda barbante,
passaporte e vela de aniversário, tudo junto...
Casa com vida é aquela em que a gente entra e se sente bem-vinda.
A que está sempre pronta pros amigos, filhos...
Netos, pros vizinhos...
E nos quartos, se possível, tem lençóis revirados por gente que brinca
ou namora a qualquer hora do dia.
Casa com vida é aquela que a gente arruma para ficar com a cara da gente.
Arrume a sua casa todos os dias...
Mas arrume de um jeito que lhe sobre tempo para viver nela...
E reconhecer nela o seu lugar."


(do baú)


Dois corpos lado a lado amanheceram além naquele quarto virado a sul.
O som da chuva forte a bater nas vidraças tinha-os acordado.
Por entre os lençóis ainda a cheirar a sono procuravam-se ambos.
Movimentos milimétricos levaram-nos à procura um do outro e encontraram-se a meio num abraço apertado.
As mãos ainda estremunhadas correram as geografias que já conheciam de cor. Das bocas só saía o silêncio dos beijos com sabor a mim e a ti trocados de dentro de nós.
- Bom dia. É bom acordar contigo - sussurrei-lhe ao ouvido.
Com a mão ao de leve tocou-me os lábios como que a empurrar novamente as palavras de encontro à alma.
E foi aí que se quedaram, enquanto as mãos percorriam os corpos que deslizavam um pelo outro, ora atraindo-se, ora afastando-se, como se de ímans de pólos iguais se tratassem.
Os mistérios do corpo saiam da pele e materializavam-se em gotas de suor. Feéricas e efémeras sorvidas logo ali por aquele fogo que os consumia.
As vozes sustinham-se, abafadas com o som dos gemidos, que se tornaram mais intensos com o correr dos momentos. Lá fora tudo era imenso, mas ali era tudo.
E os corpos explodiram então como o som das brasas quando sentem água fria a bater-lhe.
Olhámo-nos e trocamos as palavras que todos os amantes trocam quando se saciam.
Então ele levantou-se e saiu.
Do lado de fora trouxe um jarro azul que pousou nas minhas costas, enquanto me beijava a nuca.
Um jarro azul já tingido do branco original pela cor da esperança de outro acordar igual, explicou-me então.


Foram hoje conhecidos os resultados finais do concurso Blogs do ano 2011 que o Aventar promoveu.
A este canto coube o 3º lugar na categoria Livros/Literatura/Poesia.

Tal não teria sido possível sem o apoio de todos os que nele votaram e divulgaram a iniciativa, e dos amigos que, por várias formas fizeram chegar, manifestações de incentivo.
A todos o meu MUITO OBRIGADA por todo apoio que recebi!

Parabéns aos outros nomeados na mesma categoria - Clube de Leitores - que conquistou o 1º lugar e à A livreira Anarquista, a quem foi atribuído o 2º prémio.

Um agradecimento especial ao Aventar, que teve coragem de levar para a frente a iniciativa, que, como facilmente se percebe, implicou muito trabalho e pela forma coerente e democrática como permitiu a inscrição e nomeação dos blogues.

Por fim, um agradecimento especial, a quem, acreditando mais que eu, me inscreveu no concurso, mesmo contra a minha vontade.
Fica o estímulo e a promessa de voltar a estas lides com maior regularidade, pois a poética da vida tem sido levada pela voragem do dia a dia.



Até dia 28 de Janeiro está a decorrer no AVENTAR eleição do blog do ano e o Miblogamucho está na "corrida"

Para votar é só carregar AQUI, procurar a categoria Livros / Literatura / Poesia (está por ordem alfabética) seleccionar o nome Miblogamucho, com uma bolinha do lado esquerdo, e carregar em Vote.
É válido um voto por cada IP e de 24 em 24 horas.
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Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha tristeza é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.

António Ramos Rosa

(foto: Tó Gomes, Caldas da Rainha, captada na Cidade da Praia - Cabo verde)



Como quem, vindo de países distantes fora de si,
... chega finalmente aonde sempre esteve
e encontra tudo no seu lugar,
o passado no passado, o presente no presente,
assim chega o viajante à tardia idade
em que se confundem ele e o caminho.

Entra então pela primeira vez na sua casa
e deita-se pela primeira vez na sua cama.
Para trás ficaram portos, ilhas, lembranças,
cidades, estações do ano.
E come agora por fim um pão primeiro
sem o sabor de palavras estrangeiras na boca.


Manuel António Pina




Assim me perguntaste,
assim te respondi:
tudo é paixão.

Como não lamber
da tua pele, o mel
que o desejo fabrica?

E como a minha boca
não recolher o néctar
da tua boca?

Ou como não sorver
das tuas mãos o pólen
da ternura?

E se, em vez de paixão,
for sexo apenas,
ou loucura?

Pode até não ser amor.
Mas, seja o que for,
não é pior.

Joaquim Pessoa, in 'Ano Comum'

13.1.12

Sem...

 



Para mim o
amor
fica-me justo

Eu só visto
a paixão
de corpo inteiro

Maria Teresa Horta



A minha saudade tem o mar aprisionado

na sua teia de datas e lugares.
É uma matéria vibrátil e nostálgica
que não consigo tocar sem receio,

porque queima os dedos,
porque dilacera os olhos.

E não me venham dizer que é inocente,
passiva e benigna porque não posso acreditar.
A minha saudade tem mulheres agarradas ao pescoço dos que partem,
crianças a brincarem nos passeios,

amantes ocultando-se nas sebes,
soldados execrando guerras.
Pode ser uma casa ou uma rede

das que não prendem pássaros nem peixes,
das que têm malhas largas para deixar passar
o vento e a pressa
das ondas no corpo da areia.
Seria hipócrita se dissesse que esta saudade
não me vem à boca
com o sabor a fogo das coisas incumpridas.
Imagino-a distante e extinta,
e contudo
cresce em mim como um distúrbio da paixão.


José Jorge Letria



Hoje vou correr à velocidade da minha solidão

Al Berto





Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supor o que dirá
Tua boca velada
É ouvir-te já.

É ouvir-te melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das caras e dos dias.

Tu és melhor - muito melhor!
Do que tu. Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.

Mário Cesariny

(republicando)



Há muito que não se encontravam.
Os dias corriam uns atrás dos outros na exacta proporção em que o desejo ia aumentando.
Desde sempre pouco tinham dito um ao outro.
Conversas banais, de tempos e lugares, pequenas confidências sem grande importância e muitos jogos de sedução.
Jogos por jogos, em percursos em que se iam espantando um ao outro, mas que recusavam parar.
Talvez pela vaidade, pelo orgulho ou simplesmente porque quiseram deixar correr ou quem sabe, porque lhes apeteceu.
Conheciam-se profundamente. Não de alma, mas de corpo. Exploravam-se, explorando-se um ao outro minuciosamente. Os tempos e os lugares não eram compatíveis. As vidas também não. Restos do passado e vestígios do presente tolhiam voos e atitudes diferentes.
Em tempos quebraram o frágil laço que os unia. Desentendimentos, dúvidas e muitos medos.
Não havia mais para dar.
Nem sequer vontade de tomar decisões, nem decisões a tomar. As realidades não se coadunavam.
E o medo, esse, impedia de viver plenamente os breves momentos que tinham.
O frágil laço pouco tempo durou quebrado.
Batia-se o fim da primavera e o tímido começo do verão. Eram ainda aqueles tempos do ano em que os desejos mais afloram à pele e à mente. Sem grandes conversas e divagações foi mesmo a pele que falou mais alto.
A ela fascinava-a esse turbilhão de novas sensações. Novas umas, velhas outras, mas ainda assim, todas elas novas de tão esquecidas estavam. O que o fez avançar novamente é ainda uma ponta da história que ficou por contar.
O que interessa agora é contar, que nesta estranha ligação, há um fio que vai unindo algumas partes da história.
E esse fio é o mar.
Talvez esse fio seja até levemente obsessivo. Por ele perderam tempos que não tinham. E por ele, também, já tiveram alguns momentos de profunda felicidade, mesmo que muito breves.
Mas como já foi contado lá para o início, o tempo não se coaduna, nem nunca se coadunou com os desejos.
As portas se saída foram-se abrindo nos sonhos, e foi aí que se encontraram.

E esse encontro começou quando a mão esquerda dele tocou ao de leve na sua anca nua.
Ops! Um pequeno estremecimento!
A direita lentamente avançou pelo interior da coxa, enquanto duas línguas se encontravam, ora em luta desesperada, ora languidamente, como se o tempo guardasse a espera de todos os momentos desejados.
Mas ela, numa das suas fugas, procura-lhe o pescoço e aquela pequena linha de que tanto gosta de mordiscar.
As mãos, essas, entretanto perderam o controle e percorrem agora os corpos que se enleiam e contorcem a cada toque.
E nesse percorrer constante uma língua encontra-se com os mamilos dela, que por antecipação ficaram rijos de prazer. E pelo ventre a percorre enquanto lhe agarra as nádegas que puxa com firmeza contra si. E nessa descida vai encontrar-se com os pêlos curtos do seu púbis e é aí que se retém. A sua língua acaricia-os agora e a cada toque ela arqueia-se de prazer.
Pedem-se mais.
Desejam-se.
O suor inunda-os e os gemidos aumentam de intensidade. Ele penetra-a agora. Lenta mas ritmadamente, a um ritmo que cresce ao sabor dos desejo.
Um silvo agora.
Cada vez mais agudo e mais e mais.
- Que foi isto? – pergunta-se.
- O despertador! PORRA! Logo agora!

Mas se bem se lembram os tempos e os lugares não eram compatíveis e este encontro deu-se no mundo dos sonhos.



Em resposta a um desafio da Cleópatra, cujo mote é "Tenho os olhos gastos"

*
Tenho os olhos gastos, meu amor.
Cansaram-se de tanto caminhar nas linhas das cartas que escreveste.
Sabes, guardo-as todas.
Até ao mais pequeno bilhete, daqueles que deixavas na mesa da cozinha ao lado da caneca do café para eu ler quando acordava e tu já não estavas.
Tenho saudades das tuas cartas, meu amor.
De sentir a poesia da tua escrita e de imaginar os teus dedos a navegar as folhas de papel com a mesma ternura que afagavas os meus cabelos e a linha do meu pescoço.
Perdemos a poesia, amor.
Deixámos-nos envolver no turbilhão e perdemo-nos.
Perdi-me.
E perdi-te.
Gastei os olhos também aí e as palavras.
Essas, guardo-as agora no fundo dos meus olhos cansados na espera permanente de te ter de volta.




É quando um espelho, no quarto,
se enfastia;
Quando a noite se destaca
da cortina;
Quando a carne tem o travo
da saliva,
e a saliva sabe a carne
dissolvida;
Quando a força de vontade
ressuscita;
Quando o pé sobre o sapato
se equilibra...
E quando às sete da tarde
morre o dia
- que dentro de nossas almas
se ilumina,
com luz lívida, a palavra
despedida.

David Mourão Ferreira

A revolução vista por uma televisão francesa (parte 3 de 3)

A revolução vista por uma televisão francesa (parte 2 de 3)

A revolução vista por uma televisão francesa (parte 1 de 3)





Imagens filmadas pela televisão francesa no dia 25 de Abril de 1974




Meu país meu pais
Do céu límpido calmo
De campos cultivados
De praias e montanhas.

É para ti meu canto
A minha esperança.

Ouço a tua voz triste
Oh, meu país sem culpa
Ouço-a nos dias mornos
No amanhecer cinzento.

E é para ti meu canto
A minha esperança.

Meu país onde a traição domina
E o medo assoma nas encruzilhadas
Meu país de prisões e covardias
E de ladrões de estradas.

Meu país de operários
Cavadores, marinheiros
Meu país de mãos grossas
Plebeu, sensual, resistente.

É para ti meu canto
A minha esperança.

Para ti meu país
Levanto a minha voz sobre o silêncio
Desta noite de angústias
E de medos.

Nada pode calar
O nosso riso aberto
Ei-lo que invade
A terra portuguesa
E vozes juvenis formam o coro.

Por isso é para ti meu canto
A minha esperança.

Já ouço passos,
Vêem na distância
Desfraldando bandeiras e cantando
E é para ti oh! meu país liberto
O seu canto de esperança e claridade.

Daniel Filipe

21.4.10

Abrigo-me

 



Abrigo-me de ti
de mim não sei
há dias em que fujo
e que me evado

há horas em que a raiva
não sequei
nem a inveja rasguei
ou a desfaço

Há dias em que nego
e outros onde nasço

há dias só de fogo
e outros tão rasgados

Aqueles onde habito com tantos
dias vagos.


Maria Teresa Horta

PELA LIBERDADE
POR UMA IMPRENSA LIVRE

"O primeiro-ministro de Portugal tem sérias dificuldades em lidar com a diferença de opinião.
Esta dificuldade tem sido evidenciada ao longo dos últimos 5 anos, em sucessivos episódios, todos eles documentados. Desde o condicionamento das entrevistas que lhe são feitas, passando pelas interferências nas equipas editoriais de alguns órgãos de comunicação social, é para nós evidente que a actuação do primeiro-ministro tem colocado em causa o livre exercício das várias dimensões do direito fundamental à liberdade de expressão.
A recente publicação de despachos judiciais, proferidos no âmbito do processo Face Oculta, que transcrevem diversas escutas telefónicas implicando directamente o primeiro-ministro numa alegada estratégia de condicionamento da liberdade de imprensa em Portugal, dão uma nova e mais grave dimensão à actuação do primeiro-ministro.

É para nós claro que o primeiro-ministro não pode continuar a recusar-se a explicar a sua concreta intervenção em cada um dos sucessivos casos que o envolvem.

É para nós claro que o Presidente da República, a Assembleia da República e o poder judicial também não podem continuar a fingir que nada se passa.

É para nós claro que um Estado de Direito democrático não pode conviver com um primeiro-ministro que insiste em esconder-se e com órgãos de soberania que não assumem as suas competências.

É para nós claro que este silêncio generalizado constitui um evidente sinal de degradação da vida democrática, colocando em causa o regular funcionamento das instituições.

Assistimos com espanto e perplexidade a esse silêncio mas, respeitando os resultados eleitorais e a vontade expressa pelos portugueses nas últimas eleições legislativas, não nos conformamos. Da esquerda à direita rejeitamos a apatia e a inacção.

É a liberdade de expressão, acima de qualquer conflito partidário, que está em causa.Apelamos, por tudo isto, aos órgãos de soberania para que cumpram os deveres constitucionais que lhes foram confiados e para que não hesitem, em nome de uma aparente estabilidade, na defesa intransigente da Liberdade."

Dialética


É claro que a vida é boa
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz
Mas acontece que eu sou triste...

Vinício de Morais



Há dias em que todos os sonhos soam a impossíveis e apetece desistir.



Quanto sentimento cabe e de quanto desligar da realidade se é capaz.
Um sentimento de frustração aflora na pele por não ser capaz de, em palavras, transmitir sentires, sabores e odores com mestria.
Valha-nos os homens das palavras... e nisso Vinicius foi mágico.
Uma vénia.
Saravá!



***

"Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
– Perdoai!eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo que existe.

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história...

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e do mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil.

Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada...

Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens."



"Dois amantes felizes não têm fim nem morte, nascem e morrem tanta vez enquanto vivem, são eternos como é a natureza."

Pablo Neruda



Rodeada de memórias de uma infância que ainda corre.
Das viagens diárias.
Do riso aberto que fazia explodir e da ternura que corria das mãos e dos lábios.
Para um outro João Afonso que ainda não sabe que realejo vai ser.

aos gins de verão e a todo o resto

Uma garrafa de gin

estava a preocupar

o pescador.

A garoupa e o rodovalho

Não tinham aparecido

pró jantar

que fazer?

Telefonou ao ministro

da Pesca e do Trabalho

mas o ministro

estava a trabalhar

na cama

com a mulher.

Foi então

que a garrafa de gin

sugeriu discretamente

porque não

telefonar ao presidente?

Telefonaram.

O presidente da nação

estava em acção

na cama

com a mulher.

Nessa altura,

até que enfim,

encontraram a solução

o pescador

foi para a cama

com a garrafa de gin.


Mário-Henrique Leiria, in "Contos do Gin-Tonic"



Para fazer companhia ao som das ondas que entra pela janela.

No banco do jardim, como numa sala de espera, pergunta se alguém virá para a buscar, antes que a noite chegue.
E eu, do outro lado do tempo, abro o caderno para lhe escrever: «Um dia saberás o que disseram todas as cartas que não abriste; e perante o vazio a que a tua vida se resume, responderás que pouco importa o tempo, quando a eternidade
te cobriu com a sua noite, há muito

Depois, vou ao correio.
«Esqueceu-se de pôr a morada», diz-me o empregado.
«Não sei para quem escrevo», digo-lhe.
E meto na caixa o envelope em branco para que alguém, um dia, o descubra num fundo de posta restante. E ao ler o que lhe escrevi, talvez se sente num banco de jardim, pouco antes da noite, pensando no que é a vida em que todo o futuro se fixa nesse instante que não chegou a ser.

Nuno Júdice



Já falta tão pouco...

16.7.09

Vermelhos

 


Vermelhos.
Vivos.
Muito vivos e outros já idos.

Para lembrar sempre, antes que, de revisões propostas, haja aprovações.
Triste país este com actores de tão fraca cultura e menor memória.




Abraça-me bem e cobre o meu corpo, enfim
Nesse agasalho, são os teus braços, sim, cuida de mim
Basta-me um gesto, porém, abraça-me bem

Bem no teu colo, chega-me mais a ti, um pouco mais
Suavemente, assim, tudo por fim
São mágoas que eu consolo, bem no teu colo

Todo este céu, de pássaros e tons, muito assombrados
Traz o teu ser, tão bom, todo este som
Desce a nós, como um véu, todo este céu

Lançado à terra, sobre restingas e ilhéus, mil sombras de asas
Lembram a ausência de um Deus, num último adeus
Pois só o teu afago me espera, lançado à terra

Qualquer coisa acontece no mais alto dos céus
Qualquer coisa no fundo do meu coração
Mas não sei das trevas, nem da luz
Pois sem ti não há nem céu nem chão
E se a noite já ronda a minha cruz
Luz nas trevas, minha paixão


A poetica dos coisas esvai-se quando as horas, os minutos e os segundos não são os únicos a marcar o tempo.
É então que as almas cerram as cortinas e, apesar do anoitecer lá fora, deixam as luzes por acender.

Porque a vida é rendonda, por vezes os momentos repetem-se.

*
Hoje caiu-me uma frase no colo.
Vinha sozinha. Desacompanhada de todas a outras que me povoavam o pensamento.
Ao princípio assustei-me.
Uma frase assim sozinha não fazia muito sentido.
Uma frase assim tão grande e ali caída, realmente, não fazia nenhum sentido.
Mais atentamente olhei-a e tentei descodificá-la.
Li-a pausadamente como que a sorver cada palavra que a compunha.
Encontrei um verbo: o Querer. Logo mais à frente estava outro: agora era o Mudar. E ainda outro: o Desejar.
Pelo meio andavam uns adjectivos, mais uns substantivos e ainda uns tantos nomes.
Peguei-lhe numa ponta e tentei levantá-la do colo para a colocar perto dos olhos.
Ops!
Palavra atrás de palavra foi caindo da frase, fazendo pufff conforme iam tocando na mesa.
Mais uma vez espantada fiquei a olhar e a lamentar a minha proverbial inabilidade para lidar com frases e palavras.
Uma amálgama de palavras repousavam agora ao monte ao lado do café que me acompanhava.
E agora?
Como é que vou descodificar isto?
Como é que vou perceber porque é que esta frase se quis soltar das outras que me povoavam o pensamento?
Será que era mesmo importante para se fazer notar?
Bem, acho que não vai ser fácil descobrir.Naquela leitura apressada tinha-me limitado a ver as palavras e não a conjugá-las umas com as outras para fazerem o tal sentido que procurava agora.
A solução era montar tudo, como se de um puzzle se tratasse, procurando o sentido que a lógica do momento permitia.
Comecei pelos verbos. Pareciam-me os mais luminosos e os mais fáceis de escolher no meio de tanta palavra.
Primeiro peguei no Querer, logo a seguir apanhei o Desejar, depois foi a vez do Mudar, logo a seguir do Partilhar, depois o Sonhar, o Ter, seguiu-se o Tirar e por fim aquele me parecia mais descabido ali: o Perder.
Na outra ponta da mesa fui guardando alguns substantivos, nomes, pronomes, adjectivos e conjunções, para os poder ir tirando para juntar aos verbos conforme me fazia mais sentido.
Era um jogo de paciência que ali me esperava.
Tentativa atrás de tentativa, a ideia que tinha é que os verbos não cabiam com as palavras guardadas no outro canto.
O querer e o desejar eram os mais fortes de todos, dizia-me o pensamento.
E era ali, que entrava o pronome que mais se repetia. Eras Tu que queria e desejava mesmo.
E seria ali que o perder se encaixava?
Será que era um querer que de tanto querer já não quero mais?
Ou era o Querer e o Tu que não se conjugavam com o Eu?
Ou será que o Desejar tanto o Mudar não tornaria o gosto do Querer - do querer-te - aquele Desejar imenso, numa coisa quase irreal onde só cabia
Eu?
Ou será que é o Ter o que se quer sem nunca o Ter realmente – nunca o Ter pela alma - que ali faziam todo o sentido?
Que confusão reinava ali!
Voltei a olhar o monte das palavras e logo ali descobri uma em que não tinha reparado ainda: Futuro.
E aí foi mais fácil conjugar tudo.
Outros quereres se abriram na esperança de outros teres que ainda não se desejam, nem se sonham, porque o Futuro não se conjuga, para já, com o Conhecer, o Querer, o Sonhar e o Partilhar.
(Caldas da Rainha, 5 de Abril de 2006)

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